Antonio Albino Canelas Rubim *
O debate em processo sobre o Plano Nacional de Cultura (PNC) condensa uma plêiade de possibilidades muito promissoras para as políticas culturais no Brasil. Pela primeira vez, em um período democrático, podemos ter um plano nacional de cultura. Nossa única experiência anterior, que não tem sentido reivindicar, foi o projeto confeccionado em 1975, em plena ditadura cívico-militar.
Além deste caráter inaugural, o PNC pode dotar o país de políticas culturais de prazo mais amplo, enfrentando simultaneamente nossas três tristes tradições no campo das políticas culturais: ausência, autoritarismo e instabilidade [1]. O PNC, inscrito na carta constitucional e com prazo de duração previsto para 10 anos, configura a possibilidade de uma política de Estado, que transcende a temporalidade de governos. Simultaneamente, o PNC pode, deve e está sendo construído como política pública, porque submetido ao crivo de uma discussão e deliberação públicas, que incorpora a participação ativa da comunidade cultural e da sociedade brasileira. Portanto, com esta conjunção o Brasil pode passar a dispor, ao final do processo, de uma política pública de Estado, vital para o desenvolvimento da cultura no país.
A realização aberta, democrática e qualificada deste processo de debate e decisão acerca do PNC pode garantir um patamar nunca antes vivenciado pelas políticas culturais no país. Este texto pretende exatamente isto: depois de constatar a relevância do PNC para as políticas culturais brasileiras, submeter à proposta inicial, disponibilizada para discussão pública pelo Ministério da Cultura, a uma avaliação crítica, buscando colaborar na sua construção coletiva.
O procedimento de construção escolhido pelo Ministério da Cultura, que leva em conta as deliberações dos muitos encontros realizados, permite uma recolha potencialmente democrática do conjunto de demandas e contribuições emanadas da comunidade cultural e da sociedade civil. Porém, ele traz problemas que precisam ser enfrentados e resolvidos na confecção do documento. Este, em muitos momentos, tende a parecer um amontoado de conteúdos, por vezes repetitivo, sem possibilitar uma estruturação mais orgânica que permita definir prioridades, imprescindíveis a um plano substantivo. A existência de “sete conceitos e valores norteadores, 33 desafios e cinco estratégias gerais, que abrigam ao todo mais de 200 diretrizes” [2] parece ser prova cabal das dificuldades do documento.
A situação torna-se ainda mais complicada, pois esta dispersão vem conjugada com um diagnóstico - frágil e fragmentado - que apenas tangencia, mas não é capaz de produzir uma análise consistente, ainda que sintética, da cultura e das políticas culturais brasileiras. Sem este diagnóstico rigoroso, a tarefa de definir os problemas mais substantivos a serem enfrentadas pelo plano fica ainda mais dificultada. O plano carece de precisar problemas, prioridades e metas.
Temas esquecidos
Existem alguns esquecimentos notáveis em um documento que pretende abarcar tantas demandas. Um emblemático esquecimento é aquele relativo ao Sistema Nacional de Cultura, que vinha sendo construído pelo Ministério desde 2003 com uma adesão significativa dos estados e municípios brasileiros. No total, são apenas cinco citações nas 85 páginas do texto e todas elas tangenciais. Em alguns instantes do documento a evocação do SNC deveria ser obrigatória. Um esquecimento tão evidente que parte importante das contribuições do Conselho Nacional de Políticas Culturais sobre o PNC versou sobre o tema [3].
Outro silenciamento relevante: muito pouco se tematiza da relação entre cultura e mídia. Isto é particularmente preocupante em um país no qual a televisão e o rádio têm um papel nada desprezível na configuração da cultura brasileira, inclusive porque são eles os equipamentos de produção e distribuição de bens simbólicos mais disseminados no país [4]. Mais contemporaneamente, cabe registrar o avanço virótico da internet, impactando cada vez mais a cultura no mundo e no país. Apesar deste lugar crucial da democratização da mídia, o PNC praticamente desconhece o tema.
Outro esquecimento considerável: a ausência de uma atenção com a cultura das periferias urbanas brasileiras. Um plano que pretende traçar políticas para os próximos dez anos não pode, em hipótese alguma, não tratar devidamente estes territórios sócio-culturais fundamentais para o desenvolvimento do Brasil. O tema da periferia, sem dúvida, hoje adquire uma centralidade para as políticas públicas, inclusive culturais, no Brasil.
A ausência de profissionais envolvidos na organização - estatal e privada - da cultura no Brasil é uma das realidades mais emblemáticas das políticas culturais no país. O PNC desconhece esta dívida histórica que exige um enfrentamento e superação radical, caso se pretenda colocar nossas políticas culturais em um outro patamar. Um programa ou um sistema nacional de formação, qualificação e atualização de profissionais em organização da cultura, confeccionado em conjunto com instituições universitárias, parece ser indispensável a um PNC que pretenda dar conta dos principais problemas que marcam e limitam a cultura no país.
Problemas teóricos e políticos
Não é mero preciosismo acadêmico ou intelectual exigir que um documento da importância política e cultural do PNC tenha consistência teórica e conceitual, pois este rigor é indispensável para qualificar o texto, potencializando mesmo sua funcionalidade política e cultural.
O documento busca explicitar que o Ministério da Cultura vem trabalhando com a cultura entendida com base em três dimensões constitutivas. Entretanto tais dimensões sofrem uma mutação sem que exista nenhuma argumentação explicativa. Nas páginas 12 e 13, dentre as dimensões da cultura constam: a simbólica, a cidadã e a econômica. Na página 27, tal elenco aparece transmutado em: expressão simbólica, direito de cidadania e vetor de desenvolvimento. Malgrado esta última formulação ser mais precisa, seria necessário explicitar as razões da mudança. Ela, sem dúvida, seria bem vinda, pois potencialmente supera o economicismo inscrito na versão inicial e mais que isto amplia a terceira dimensão da cultura ao reivindicar uma relação com o desenvolvimento, que, por certo, não pode ser reduzido a um patamar apenas econômico. Mas na página 66, a trilogia reaparece com uma recaída economicista: “cidadania, pluralidade simbólica e economia da cultura”.
Mesmo um conceito central como o de políticas culturais comporta ambigüidades no documento do PNC. O uso inconsistente da noção permite que se escreva, por exemplo na página 52: “58% dos municípios executam políticas culturais”. Se este percentual dos municípios brasileiros tivesse efetivamente políticas culturais, a situação do país estaria bem melhor no campo da cultura. Possivelmente o dado a ser divulgado é que 58% dos municípios brasileiros executam ações culturais, mas não possuem por isto necessariamente políticas culturais.
Um outro aspecto que retém fragilidades teóricas diz respeito à utilização da noção de diversidade cultural. Na página 28, o documento assinala a indissociabilidade entre natureza e cultura e logo depois recorre à biodiversidade como fonte de inspiração de políticas. A aproximação entre biodiversidade e diversidade cultural pode até ser compreendida como recurso político para afirmar a diversidade cultural, dada a legitimidade atual alcançada pela luta em prol do meio-ambiente e da biodiversidade, mas este procedimento revela problemas nada desprezíveis.
A diversidade é do mundo da cultura, que supõe, para o mal e para o bem, na sua constituição um processo de descolamento e de separação da natureza. Já a biodiversidade está inscrita na natureza. Enquanto o verbo mais adequado para a biodiversidade é preservar, para a diversidade cultural o verbo mais pertinente a ser acionado é promover e não apenas preservar.
Outras dimensões relativas à diversidade cultural precisam ser assumidas em toda a sua complexidade no documento. Não cabe afirmar unilateralmente, como ocorre na página 63, que o Brasil “...possui experiência histórica de negociação da diversidade e de reconhecimento de seu valor simbólico”, sem alertar que o país também comporta outras tradições que se inscrevem exatamente na contramão da capacidade de negociar e de reconhecer a diversidade, impondo monocultura. Afinal não se pode ancorar uma política para a diversidade cultural em concepções tão frágeis da história e da sociedade brasileiras. Esquecer as tensões, conflitos, contradições, antagonismos e lutas que permeiam toda a trajetória da nação brasileira, não constitui um bom alicerce para a construção do PNC. O Brasil precisa ser retido toda a sua tensa complexidade: com suas barbáries e atos civilizatórios; com seus autoritarismos e atitudes democráticas; enfim, com suas regressões e utopias.
Os riscos de visões unilaterais são muitos e provém de variadas fontes. A recente hegemonia do “pensamento único” deixou marca profundas no ambiente político e cultural internacional e nacional. Evelina Dagnino [5], em excelente texto, apontou algumas das reconversões discursivas ocasionadas no país pelo predomínio da dicção neoliberal. Uma delas, foi intitulada de ongnização da sociedade civil. Ou seja, a complexa composição da sociedade civil, tal qual inscrita no pensamento democrático de luta contra a ditadura, no qual despontam múltiplos atores, tais como: sindicatos, associações de variados tipos, entidades estudantis e comunitárias, movimentos sociais, instituições ambientalistas e inclusive ongs, é substituída, sem mais, pela quase exclusiva atenção com os ongs, como se elas fossem a (totalidade da) sociedade civil. O risco da ongnização habita muitos espaços do texto. Estar atento e firme com relação às contaminações do texto, muitas vezes indesejadas, deve ser algo obrigatório para uma conformação democrática do PNC.
Valores e políticas culturais
Por fim, chega-se a um terreno essencial das políticas culturais: o horizonte dos valores, que, infelizmente, tem sido tão desprezado na reflexão, na formulação e na realização destas políticas na contemporaneidade. A resistência às experiências autoritárias do estado brasileiro misturadas, no tempo recente, à pregação neoliberal de um estado mínimo configuraram um ambiente de perigosa suspeita acerca de toda e qualquer atuação do estado na totalidade das esferas sociais e mesmo na cultura. O ex-ministro Gilberto Gil em seus discursos programáticos [6] fez referências à necessidade de que o estado passasse a ter um papel ativo no campo das políticas culturais, por contraposição à quase ausência do estado e presença forte de mercado, via leis de incentivo fiscal, no governo FHC / Francisco Weffort.
A imperiosa necessidade de pensar e de repensar o papel do estado na cultura praticamente não se encontra contemplada no documento. Tangencialmente este tema essencial aparece no capítulo intitulado “Valores e conceitos”, que abrange apenas três páginas, e não emerge de modo consistente como seria fundamental. A começar por uma afirmativa, na página 28, que reúne, sem mais, governos e empresas. Nela está escrito: “Não cabe aos governos e às empresas conduzir a produção da cultura (...) impondo-lhe hierarquias e sistemas de valores”. Em seguida, são listadas as pretendidas atribuições do Estado na cultura: “permanentemente reconhecer e apoiar”; promover “o direito à emancipação, à autodeterminação e à liberdade de indivíduos e grupos”; “estabelecer condições para que as populações que compõem a sociedade brasileira possam criar e se expressar livremente a partir de suas visões de mundo, modos de vida, suas línguas, expressões simbólicas e manifestações estéticas”. E mais: “O estado deve garantir ainda o pleno acesso aos meios, acervos e manifestações simbólicas de outras populações que formam o repertório da humanidade”.
Enfim, como sintetiza o título do valor de número cinco: “O Estado deve atuar como indutor, fomentador e regulador das atividades, serviços e bens culturais”. Na página seguinte, está escrito que o “Ministério não pode ser identificado exclusivamente como um mero repassador de recursos”, que ele deve ser um “agente ativo e indutor” na “formulação de políticas públicas e de sua execução”.
A tematização aligeirada de algo tão fundamental e, por certo, polêmico como o papel do Estado na cultura não permite um enfrentamento rigoroso e corajoso desta questão crucial para o PNC: quais os lugares e papéis do estado (em todos os seus patamares: nacional, estaduais e municipais), da sociedade civil e da iniciativa privada no campo cultural? Circunscrever o papel do estado a um mero, mas relevante, suporte do desenvolvimento de atividades culturais oriundas da sociedade pode, pretensamente, configurar uma solução, ainda que marcada pela atitude defensiva e mesmo pelo signo do medo. Sem dúvida, o estado pode e deve desempenhar este papel de instrumento. A questão é saber se o papel do estado, em sua feição democrática, pode ser circunscrito a isto. Ou se o estado pode deliberadamente, por uma decisão inscrita em um patamar racional, se destituir de valores, pois como todo e qualquer agente social (poderoso), de modo imanente, ele sempre reúne e mesmo transmite valores. Ou ainda se é possível e desejável tal atitude neutral, que trata e relativiza todos os valores como legítimos e possíveis. Ou para concluir: ao abdicar de intervir no campo dos valores sociais, o estado está efetivamente desenvolvendo políticas culturais? Cabe perguntar: existe política sem valores? Ou o estado pode abdicar de fazer política?
* Professor da Universidade Federal da Bahia. Docente do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade e Coordenador do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura da UFBA. Pesquisador do CNPq. Presidente do Conselho Estadual de Cultura da Bahia.
[1] RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais do Governo Lula / Gil: Desafios e enfrentamentos. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas e BAYARDO, Rubens (orgs.) Políticas culturais na Ibero-América. Salvador, Edufba, 2008, p.51-74.
[2] MINISTÉRIO DA CULTURA e CÂMARA DOS DEPUTADOS. Plano Nacional de Cultura. Brasília, Ministério da Cultura / Câmara dos Deputados, 2007, p.23.
[3] CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICAS CULTURAIS. Revisões de texto realizadas pelo Conselho Nacional de Políticas Culturais. Brasília, junho de 2008.
[4] RUBIM, Antonio Albino Canelas e RUBIM, Lindinalva. Televisão e política cultural no Brasil. In: Revista USP. São Paulo, (61):16-28, março / abril / maio de 2004.
[5] DAGNINO, Evelina. Políticas culturais, democracia e projeto neoliberal. In: Revista Rio de Janeiro, (15): 45-65, janeiro / abril de 2005.
[6] GIL, Gilberto. Discursos do Ministro da Cultura Gilberto Gil. Brasília, Ministério da Cultura, 2003.
O debate em processo sobre o Plano Nacional de Cultura (PNC) condensa uma plêiade de possibilidades muito promissoras para as políticas culturais no Brasil. Pela primeira vez, em um período democrático, podemos ter um plano nacional de cultura. Nossa única experiência anterior, que não tem sentido reivindicar, foi o projeto confeccionado em 1975, em plena ditadura cívico-militar.
Além deste caráter inaugural, o PNC pode dotar o país de políticas culturais de prazo mais amplo, enfrentando simultaneamente nossas três tristes tradições no campo das políticas culturais: ausência, autoritarismo e instabilidade [1]. O PNC, inscrito na carta constitucional e com prazo de duração previsto para 10 anos, configura a possibilidade de uma política de Estado, que transcende a temporalidade de governos. Simultaneamente, o PNC pode, deve e está sendo construído como política pública, porque submetido ao crivo de uma discussão e deliberação públicas, que incorpora a participação ativa da comunidade cultural e da sociedade brasileira. Portanto, com esta conjunção o Brasil pode passar a dispor, ao final do processo, de uma política pública de Estado, vital para o desenvolvimento da cultura no país.
A realização aberta, democrática e qualificada deste processo de debate e decisão acerca do PNC pode garantir um patamar nunca antes vivenciado pelas políticas culturais no país. Este texto pretende exatamente isto: depois de constatar a relevância do PNC para as políticas culturais brasileiras, submeter à proposta inicial, disponibilizada para discussão pública pelo Ministério da Cultura, a uma avaliação crítica, buscando colaborar na sua construção coletiva.
O procedimento de construção escolhido pelo Ministério da Cultura, que leva em conta as deliberações dos muitos encontros realizados, permite uma recolha potencialmente democrática do conjunto de demandas e contribuições emanadas da comunidade cultural e da sociedade civil. Porém, ele traz problemas que precisam ser enfrentados e resolvidos na confecção do documento. Este, em muitos momentos, tende a parecer um amontoado de conteúdos, por vezes repetitivo, sem possibilitar uma estruturação mais orgânica que permita definir prioridades, imprescindíveis a um plano substantivo. A existência de “sete conceitos e valores norteadores, 33 desafios e cinco estratégias gerais, que abrigam ao todo mais de 200 diretrizes” [2] parece ser prova cabal das dificuldades do documento.
A situação torna-se ainda mais complicada, pois esta dispersão vem conjugada com um diagnóstico - frágil e fragmentado - que apenas tangencia, mas não é capaz de produzir uma análise consistente, ainda que sintética, da cultura e das políticas culturais brasileiras. Sem este diagnóstico rigoroso, a tarefa de definir os problemas mais substantivos a serem enfrentadas pelo plano fica ainda mais dificultada. O plano carece de precisar problemas, prioridades e metas.
Temas esquecidos
Existem alguns esquecimentos notáveis em um documento que pretende abarcar tantas demandas. Um emblemático esquecimento é aquele relativo ao Sistema Nacional de Cultura, que vinha sendo construído pelo Ministério desde 2003 com uma adesão significativa dos estados e municípios brasileiros. No total, são apenas cinco citações nas 85 páginas do texto e todas elas tangenciais. Em alguns instantes do documento a evocação do SNC deveria ser obrigatória. Um esquecimento tão evidente que parte importante das contribuições do Conselho Nacional de Políticas Culturais sobre o PNC versou sobre o tema [3].
Outro silenciamento relevante: muito pouco se tematiza da relação entre cultura e mídia. Isto é particularmente preocupante em um país no qual a televisão e o rádio têm um papel nada desprezível na configuração da cultura brasileira, inclusive porque são eles os equipamentos de produção e distribuição de bens simbólicos mais disseminados no país [4]. Mais contemporaneamente, cabe registrar o avanço virótico da internet, impactando cada vez mais a cultura no mundo e no país. Apesar deste lugar crucial da democratização da mídia, o PNC praticamente desconhece o tema.
Outro esquecimento considerável: a ausência de uma atenção com a cultura das periferias urbanas brasileiras. Um plano que pretende traçar políticas para os próximos dez anos não pode, em hipótese alguma, não tratar devidamente estes territórios sócio-culturais fundamentais para o desenvolvimento do Brasil. O tema da periferia, sem dúvida, hoje adquire uma centralidade para as políticas públicas, inclusive culturais, no Brasil.
A ausência de profissionais envolvidos na organização - estatal e privada - da cultura no Brasil é uma das realidades mais emblemáticas das políticas culturais no país. O PNC desconhece esta dívida histórica que exige um enfrentamento e superação radical, caso se pretenda colocar nossas políticas culturais em um outro patamar. Um programa ou um sistema nacional de formação, qualificação e atualização de profissionais em organização da cultura, confeccionado em conjunto com instituições universitárias, parece ser indispensável a um PNC que pretenda dar conta dos principais problemas que marcam e limitam a cultura no país.
Problemas teóricos e políticos
Não é mero preciosismo acadêmico ou intelectual exigir que um documento da importância política e cultural do PNC tenha consistência teórica e conceitual, pois este rigor é indispensável para qualificar o texto, potencializando mesmo sua funcionalidade política e cultural.
O documento busca explicitar que o Ministério da Cultura vem trabalhando com a cultura entendida com base em três dimensões constitutivas. Entretanto tais dimensões sofrem uma mutação sem que exista nenhuma argumentação explicativa. Nas páginas 12 e 13, dentre as dimensões da cultura constam: a simbólica, a cidadã e a econômica. Na página 27, tal elenco aparece transmutado em: expressão simbólica, direito de cidadania e vetor de desenvolvimento. Malgrado esta última formulação ser mais precisa, seria necessário explicitar as razões da mudança. Ela, sem dúvida, seria bem vinda, pois potencialmente supera o economicismo inscrito na versão inicial e mais que isto amplia a terceira dimensão da cultura ao reivindicar uma relação com o desenvolvimento, que, por certo, não pode ser reduzido a um patamar apenas econômico. Mas na página 66, a trilogia reaparece com uma recaída economicista: “cidadania, pluralidade simbólica e economia da cultura”.
Mesmo um conceito central como o de políticas culturais comporta ambigüidades no documento do PNC. O uso inconsistente da noção permite que se escreva, por exemplo na página 52: “58% dos municípios executam políticas culturais”. Se este percentual dos municípios brasileiros tivesse efetivamente políticas culturais, a situação do país estaria bem melhor no campo da cultura. Possivelmente o dado a ser divulgado é que 58% dos municípios brasileiros executam ações culturais, mas não possuem por isto necessariamente políticas culturais.
Um outro aspecto que retém fragilidades teóricas diz respeito à utilização da noção de diversidade cultural. Na página 28, o documento assinala a indissociabilidade entre natureza e cultura e logo depois recorre à biodiversidade como fonte de inspiração de políticas. A aproximação entre biodiversidade e diversidade cultural pode até ser compreendida como recurso político para afirmar a diversidade cultural, dada a legitimidade atual alcançada pela luta em prol do meio-ambiente e da biodiversidade, mas este procedimento revela problemas nada desprezíveis.
A diversidade é do mundo da cultura, que supõe, para o mal e para o bem, na sua constituição um processo de descolamento e de separação da natureza. Já a biodiversidade está inscrita na natureza. Enquanto o verbo mais adequado para a biodiversidade é preservar, para a diversidade cultural o verbo mais pertinente a ser acionado é promover e não apenas preservar.
Outras dimensões relativas à diversidade cultural precisam ser assumidas em toda a sua complexidade no documento. Não cabe afirmar unilateralmente, como ocorre na página 63, que o Brasil “...possui experiência histórica de negociação da diversidade e de reconhecimento de seu valor simbólico”, sem alertar que o país também comporta outras tradições que se inscrevem exatamente na contramão da capacidade de negociar e de reconhecer a diversidade, impondo monocultura. Afinal não se pode ancorar uma política para a diversidade cultural em concepções tão frágeis da história e da sociedade brasileiras. Esquecer as tensões, conflitos, contradições, antagonismos e lutas que permeiam toda a trajetória da nação brasileira, não constitui um bom alicerce para a construção do PNC. O Brasil precisa ser retido toda a sua tensa complexidade: com suas barbáries e atos civilizatórios; com seus autoritarismos e atitudes democráticas; enfim, com suas regressões e utopias.
Os riscos de visões unilaterais são muitos e provém de variadas fontes. A recente hegemonia do “pensamento único” deixou marca profundas no ambiente político e cultural internacional e nacional. Evelina Dagnino [5], em excelente texto, apontou algumas das reconversões discursivas ocasionadas no país pelo predomínio da dicção neoliberal. Uma delas, foi intitulada de ongnização da sociedade civil. Ou seja, a complexa composição da sociedade civil, tal qual inscrita no pensamento democrático de luta contra a ditadura, no qual despontam múltiplos atores, tais como: sindicatos, associações de variados tipos, entidades estudantis e comunitárias, movimentos sociais, instituições ambientalistas e inclusive ongs, é substituída, sem mais, pela quase exclusiva atenção com os ongs, como se elas fossem a (totalidade da) sociedade civil. O risco da ongnização habita muitos espaços do texto. Estar atento e firme com relação às contaminações do texto, muitas vezes indesejadas, deve ser algo obrigatório para uma conformação democrática do PNC.
Valores e políticas culturais
Por fim, chega-se a um terreno essencial das políticas culturais: o horizonte dos valores, que, infelizmente, tem sido tão desprezado na reflexão, na formulação e na realização destas políticas na contemporaneidade. A resistência às experiências autoritárias do estado brasileiro misturadas, no tempo recente, à pregação neoliberal de um estado mínimo configuraram um ambiente de perigosa suspeita acerca de toda e qualquer atuação do estado na totalidade das esferas sociais e mesmo na cultura. O ex-ministro Gilberto Gil em seus discursos programáticos [6] fez referências à necessidade de que o estado passasse a ter um papel ativo no campo das políticas culturais, por contraposição à quase ausência do estado e presença forte de mercado, via leis de incentivo fiscal, no governo FHC / Francisco Weffort.
A imperiosa necessidade de pensar e de repensar o papel do estado na cultura praticamente não se encontra contemplada no documento. Tangencialmente este tema essencial aparece no capítulo intitulado “Valores e conceitos”, que abrange apenas três páginas, e não emerge de modo consistente como seria fundamental. A começar por uma afirmativa, na página 28, que reúne, sem mais, governos e empresas. Nela está escrito: “Não cabe aos governos e às empresas conduzir a produção da cultura (...) impondo-lhe hierarquias e sistemas de valores”. Em seguida, são listadas as pretendidas atribuições do Estado na cultura: “permanentemente reconhecer e apoiar”; promover “o direito à emancipação, à autodeterminação e à liberdade de indivíduos e grupos”; “estabelecer condições para que as populações que compõem a sociedade brasileira possam criar e se expressar livremente a partir de suas visões de mundo, modos de vida, suas línguas, expressões simbólicas e manifestações estéticas”. E mais: “O estado deve garantir ainda o pleno acesso aos meios, acervos e manifestações simbólicas de outras populações que formam o repertório da humanidade”.
Enfim, como sintetiza o título do valor de número cinco: “O Estado deve atuar como indutor, fomentador e regulador das atividades, serviços e bens culturais”. Na página seguinte, está escrito que o “Ministério não pode ser identificado exclusivamente como um mero repassador de recursos”, que ele deve ser um “agente ativo e indutor” na “formulação de políticas públicas e de sua execução”.
A tematização aligeirada de algo tão fundamental e, por certo, polêmico como o papel do Estado na cultura não permite um enfrentamento rigoroso e corajoso desta questão crucial para o PNC: quais os lugares e papéis do estado (em todos os seus patamares: nacional, estaduais e municipais), da sociedade civil e da iniciativa privada no campo cultural? Circunscrever o papel do estado a um mero, mas relevante, suporte do desenvolvimento de atividades culturais oriundas da sociedade pode, pretensamente, configurar uma solução, ainda que marcada pela atitude defensiva e mesmo pelo signo do medo. Sem dúvida, o estado pode e deve desempenhar este papel de instrumento. A questão é saber se o papel do estado, em sua feição democrática, pode ser circunscrito a isto. Ou se o estado pode deliberadamente, por uma decisão inscrita em um patamar racional, se destituir de valores, pois como todo e qualquer agente social (poderoso), de modo imanente, ele sempre reúne e mesmo transmite valores. Ou ainda se é possível e desejável tal atitude neutral, que trata e relativiza todos os valores como legítimos e possíveis. Ou para concluir: ao abdicar de intervir no campo dos valores sociais, o estado está efetivamente desenvolvendo políticas culturais? Cabe perguntar: existe política sem valores? Ou o estado pode abdicar de fazer política?
* Professor da Universidade Federal da Bahia. Docente do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade e Coordenador do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura da UFBA. Pesquisador do CNPq. Presidente do Conselho Estadual de Cultura da Bahia.
[1] RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais do Governo Lula / Gil: Desafios e enfrentamentos. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas e BAYARDO, Rubens (orgs.) Políticas culturais na Ibero-América. Salvador, Edufba, 2008, p.51-74.
[2] MINISTÉRIO DA CULTURA e CÂMARA DOS DEPUTADOS. Plano Nacional de Cultura. Brasília, Ministério da Cultura / Câmara dos Deputados, 2007, p.23.
[3] CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICAS CULTURAIS. Revisões de texto realizadas pelo Conselho Nacional de Políticas Culturais. Brasília, junho de 2008.
[4] RUBIM, Antonio Albino Canelas e RUBIM, Lindinalva. Televisão e política cultural no Brasil. In: Revista USP. São Paulo, (61):16-28, março / abril / maio de 2004.
[5] DAGNINO, Evelina. Políticas culturais, democracia e projeto neoliberal. In: Revista Rio de Janeiro, (15): 45-65, janeiro / abril de 2005.
[6] GIL, Gilberto. Discursos do Ministro da Cultura Gilberto Gil. Brasília, Ministério da Cultura, 2003.
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